Livro
Provai e Vede
- 4ª Edição -
Lóla Prata
RESPOSTA CLARA
Um último movimento afivelando o cinto de segurança e a viagem começou. Seria curta, apenas uns vinte quilômetros no asfalto e mais outro tanto pelo chão batido. Trouxe água no isopor porque o trajeto era em solo semiárido do Brasil central, cortando o cerrado delimitado por fazendas cujas sedes nem se enxergavam da estrada.
O pensamento já lá havia chegado... o quê encontraria nessa peregrinação? O Espírito Santo de Deus habitaria aquele lugar ermo? Ou seria um sonho enganador do casal que fundara aquela comunidade? Estaria eu perdendo tempo ou lá havia um cantinho do Reino que Jesus instituíra?
A mente habituada a consultas com Deus pediu um sinal divino que dirimisse as dúvidas. Imaginou um montão de coisas, mas combinou com Ele, como uma ingênua filha, o seguinte: se alguém da comunidade Família de Nazaré, no decorrer do dia, entre conversas ou palestras de cunho espiritual pronunciasse a palavra CLARA, aí sim, acreditaria nas incríveis propostas de renovação de vida feitas pelo pessoal da Casa de Maria, situada entre os municípios de Caldas Novas e Rio Quente, em Goiás.
A porteira escancarada, convidativa, recebeu o carro e a passageira desconfiada. Uma enorme e ainda inacabada construção da cor do barro se exibiu, enquanto uma porta de ferro vazada, com cruz e arabescos anunciava a capela com o sacrário ocupado pelo divino morador.
Uma sombra preciosa abrigou o carro, enquanto a voz de um homem postado ao lado de uma mulher, se dirigia a meu acompanhante, de longe, com boas-vindas.
Caminhamos até eles. Estendi a mão para ela e apresentei-me, pronunciando meu nome. Ela, olhando-me fixamente, disse:
- Clara!
Fiquei estática... muda... perplexa!
Era o nome dela. Era o sinal combinado. Não falara nada do que é costume:
- Como vai? Muito prazer!..., nada!
Deus e sua glória incomensurável haviam ungido aquele lugar que, para mim, recebera naquele instante o “habite-se” celeste. Jogaria a água natural fora, pois ali receberia a água--viva que desce do céu.
O DOM DE LÍNGUAS
Eles nos receberam com o coração aberto, para nos consolar em nosso luto por um filho de 33 anos. Sentamo-nos no jardim, frente ao ponto do pôr-do-sol, numa paisagem ampla, esplendorosa. Aguardamos a hora do espetáculo sempre inédito, embevecidos com as pinturas celestes. Uma grande e cristã amizade nos unia nesses momentos em que as emoções se misturam.
não por isso
Após a sensacional apresentação da natureza, entramos para jantar e continuar a confraternização. Embora inadequado, o assunto girou sobre o luto, passando depois aos problemas de crenças. Falamos sobre ressurreição, juízo, e afinal, nos detivemos sobre o dom de línguas, fenômeno considerado como dom do Espírito Santo para nossa edificação.
Marcello era o mais interessado, o mais polêmico dos quatro, com a opinião de que não passava de crise conjunta e histérica do pessoal católico com tendência ao fanatismo. Pois, se ninguém entendia nada, não servia para nada. Ouviu, porém, com a melhor das atenções e intenções, como quem quer compreender a nossa defesa. Consideramos que o orante em línguas havia se vencido com humildade, reduzindo o raciocínio, a razão, a inteligência, para soltar os sons que se desdobravam céleres e ininteligíveis para os demais. Conseguir se humilhar dessa maneira diante dos outros seria como uma criança que mal sabe se expressar e é compreendida perfeitamente por sua mãe, em suas necessidades expressas em balbucios.
A conversa se estendeu, animada, servindo até para nos tirar da tristeza crônica que nos acompanhava.
Ninguém poderia imaginar que Marcello, dali a uns dois meses, estaria frente ao Pai, vitimado por medicamentos errados para curar uma simples gripe.
Golpe terrível para a viúva Auxiliadora e para os parentes e amigos.
Não estivemos presentes na ocasião. Assim que voltamos a Rio Quente, três meses depois, fomos visitar a amiga, assumindo agora o papel de consoladores, o mesmo papel que eles fizeram quando de nosso luto.
Era pela manhã de um domingo quente.
Abraçamo-nos cordialmente. Ela estava calma e feliz. Contou-nos que na noite passada, sonhara com o marido. Entusiasmada, contou-nos o sonho:
- Sonhei com Marcello! Há quanto tempo esperava por isso! Um sonho rápido, mas maravilhoso: vestido de algo bem claro, me olhou e tentou falar comigo. Não conseguia; apenas dizia coisas enroladas, sem nexo para mim, mas o perfume que saía dessas palavras era algo indescritível. Esse perfume nos inundou. Foi maravilhoso.
Como as lágrimas apareceram nos olhos dela e de todos, esperei que a sensação passasse para lembrá-la:
- Você se lembra do teor da conversa daquela vez que jantamos com vocês dois?
Ante a resposta negativa, respondi-lhe:
- Sobre o dom de línguas... ; eis a resposta que Marcello deu a você e a nós, através de seu sonho. Mesmo que nós não o compreendamos, Deus entende essa linguagem da alma e de anjos, que sobe até Ele como suave perfume de nossa entrega total.
Aí foi que choramos todos.
OTONIEL
Um coveiro. De um incipiente cemitério, com poucos sepultados e só ele tomando conta, varrendo folhas, cuidando de tudo, enfim. Sentamo-nos num dos bancos. Nunca vou saber o porquê, mas ele começou a abrir o coração para nós.
Naquele ambiente sisudo, respirava-se alegria e o recinto transformara-se num parque-confessionário.
No preâmbulo, ele se desculpou por não ser letrado como nós e de entender pouco de religião. Fomos supervalorizados por suas palavras humildes. Dizia ele com sotaque nordestino inconfundível, de sua vida pregressa totalmente perdida e condenável. O único pecado que não havia feito era o assassinato. Sua mulher não desanimava dele, a única, porque nem os filhos o amavam e respeitavam. Ela, da igreja protestante, o avisava de suas orações intercessoras para sua conversão, enquanto ele debochava dessas atitudes. Vida brava!
Depois de muitos anos assim, ele se encontrava no trabalho, sob uma chuva insistente que o obrigou a se proteger num canto qualquer que dava visão para a larga avenida solitária, em cujo canteiro central havia bancos de descanso.
Foi quando viu aquele livro que, batido pelo vento, parecia ter vida: iam-se virando as páginas. A chuva molhava o volume, mas as páginas continuavam leves e maleáveis. Uns transeuntes passaram, examinaram e desprezaram o livro. Otoniel resolveu pegá-lo. Era uma Bíblia esfolada, desfolhada, sem capa, páginas amarelecidas e enroladas nas pontas. Sucata!
Otoniel não pensou assim; para ele significou o tesouro; o mesmo Otoniel que não ousava abrir a Bíblia bem cuidada de sua mulher, apertou o chumaço de papel contra o peito e, de volta ao cantinho onde se abrigava, leu o primeiro recado de amor.
Era a passagem de Atos dos Apóstolos, capítulo 3: todos os dias instalavam o homem coxo à porta do Templo chamada Formosa para pedir esmola aos que entravam. Quando ele viu Pedro e João, que iam entrar no Templo, solicitou-lhes uma esmola. Pedro e João também – o fixaram e lhe disseram:
- Olha para nós.
O homem os observava, pois esperava obter deles alguma coisa. Pedro lhe disse: “- ouro ou prata eu não tenho; mas o que tenho, isso te dou: em nome de Jesus Cristo, o Nazareno, levanta-te e anda”.
Otoniel sentiu-se como o coxo a pedir esmola. A esmola da cura espiritual. A esmola que recebeu na figura física de um livro, um livro sagrado.
Abriu de novo o calhamaço úmido, como para certificar-se de que era um ex-aleijado.
O segundo recado no Livro de Jonas.
Leu os capítulos avidamente, sem entender muita coisa; fixou-se na parte onde Jonas estava dentro da barriga da baleia. Ele se viu assim: na escuridão, engolido pelo mal.
O terceiro recado: do livro de Daniel, na passagem onde o rei Nabucodonosor sonha com uma enorme estátua e quer que adivinhos lhe contem o sonho e o interpretem. Daniel soube do mistério do rei pelo Senhor a quem louvava na prisão. O rei lhe diz: Em verdade, vosso Deus é o Deus dos deuses, o revelador dos mistérios...
Otoniel recebeu nessas passagens, a graça da vontade de renovar a vida. Persevera até hoje.
A família também se reestruturou.
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