Livro


PRATA
DA
CASA


LÓLA PRATA

Na memória

Primeiramente, esclareço que gostaria de utilizar um palavreado poético, descrevendo o cenário no qual a cena se desenrola; ficaria muito mais bonito com: ...raios faiscavam como flechas impiedosas, ferindo a inocência da atmosfera, algo assim, mas o que aconteceu foi dentro de casa, com a TV ligada nas alturas, com o conflito entre pseudo-anjinhos fãs de programações diferentes.  O pampeiro armado.  O telefone toca, insistente.

- Atende você.

- Não! Já atendi da outra vez...

Eu deveria grafar com letras maiúsculas tal diálogo para dar a exata noção dos berros e da rispidez fraterna que poluíam o ambiente sagrado do lar.  Bem, a minúscula é mais prática de digitar. Imaginem uma balbúrdia doméstica, tá ?

            - Você que é preguiçoooooso!

- E você é buuuuurrrrro!

O dito preguiçoso Júlio atendeu, contrariado. Alguém falou:

- Oi, querido, a mamãe está?

- Nããão!

- Ah, que pena, eu precisava tanto falar com ela! Posso deixar um recado com você?

- Olha aqui... não deixa não, porque a minha memória é fraca[1].  Telefona depois!  Tchau!  


Ou nas palavras escritas

Lourdinha (5) via os demais familiares afobados, entrando e saindo da casa dos avós. Alguma coisa mal parada deveria estar acontecendo...  Palavras novas percorriam os caminhos de sua cabecinha fofa de jardim-de-infância: enfarte, perigo de morte, choque no peito...  Nenhum adulto se detinha para explicar o corre-corre. Teve vergonha de perguntar e fingia pentear a boneca.  Menina carinhosa, sensível e, por isso, com tendência inata para a espiritualidade.

Deduziu que seu avô ia morrer. Que seria morrer?  Desaparecer? Ir para o fundo da terra, guardado no caixão preto. Era um terror pensar naquilo. Seu avô... que comia amendoim todo dia e de cujo potinho especial, os netos roubavam um pouco, sempre que iam lá? Que coisa...

Não, não podia deixar que ele morresse.  Escreveria uma carta para Deus. Deus era muito poderoso, podia fazer tudo, era o maior mágico que conhecia: fizera aparecer as galinhas, os cachorros, fazia o sol pegar fogo todo dia...

Conseguiu um lápis e um pedaço de papel que, na verdade, não estava muito lisinho, mas dava para desenhar as letrinhas.  E escreveu as sílabas que conhecia, das primeiras lições da cartilha.  Vovô... era fácil;  Deus... era fácil; cura, também sabia.

Isolada na seu quarto, sentou-se no chão fresco e deu início ao empreendimento.

Deus  cura  o  vovô[2]”.

A oração saiu desse jeito bonito, com uma lágrima furtiva a descer pelo rostinho; mas ela logo chupou o nariz e engoliu a secreção. 

Um intelectual crítico reclamaria da ausência da vírgula depois do vocativo. Um teólogo analisaria a fé autêntica da garotinha, sendo a frase, afirmativa e, portanto, a prece seria uma manifestação de fé verdadeira, certeza da concessão da graça requerida.

Depois de pronto o bilhete, dobrou bem dobradinho, apertadinho e... pra quem entregar?  Como fazer a carta voar? Se fizesse um aviãozinho e jogasse para o alto?  Afastou prontamente a idéia porque seus origamis eram um desastre e atraíam a caçoada dos primos que, naquela hora, também andavam de um lado para outro, desconcertados com a falta da rotina costumeira.  Então, cansada do dilema, escondeu a missiva embaixo do travesseiro, para resolver o problema mais tarde.

Continuou a brincadeira de casinha, interrompida momentos antes, mas atenta à saída de seu avô deitado na cama-de-vento branca, carregada por dois homenzarrões.  A boneca aconchegou-se no seu ombro.  A menina levou-a para a cama e dormiu, também.

*

Ao acordar, descobriu-se moça, filiada à Pia União das Filhas de Maria, talvez pivô de escândalo à quase unanimidade de anticlericais que a cercavam.  Seu avô Sancho era um deles; só ia à Missa no dia da Imaculada Conceição; nenhum sétimo-dia o arrastava para o templo mas, no oito de dezembro, podia chover canivete que ele marcava presença numa celebração. Vovó Ruth dizia, talvez enciumada, que eram íntimos: Conceição e ele.

Pois é, literatura transcende expectativas e a vã dimensão de tempo e, entre o tempo de infância e juventude, existe somente um período lingüístico ou calendarístico.

Isso considerado, o avô chama a jovem junto ao cofre cheio de documentos, escrituras, dinheiro e tesouros que a criançada sempre encasquetou que o vô escondia.  O tesouro devia consistir em jóias guardadas em caixinhas bordôs as quais divisou na escuridão da “burra” (quer dizer cofre, daí a expressão: está com a burra cheia de dinheiro. Desculpe a explicação mas essa narradora é meio burra e julga os outros por si mesmo).

Continuando sem escapar do contexto: vovô lhe apresenta um papel não muito lisinho e bem dobradinho, agora em tom amarelo-mofo e, com a voz embargada, dirige-se a ela:

-Obrigado pela oração.

Ofereceu o papelzinho à moça.  Ela emocionou-se. Ruborizou-se.  Disse:

-Naquela época, pensei que meu anjo-da-guarda tivesse levado o papel para Deus.

-Provavelmente sim, mas Ele deve ter deixado cair o papel lá de cima, sua mãe o encontrou e levou-o ao hospital onde eu estava...

           

Seria melhor acabar o conto com um abraço mas, como presenciei o fato e quero ser autêntico, eles apenas sorriram, felizes, um para o outro.

Sei, também, que a menina acalentava um incipiente desejo de ser  santa e, quem sabe, escritora e pressentiu no acontecimento, um sinal promissor de tal projeto.

[1] Serve para despachar rápido quem solicita  serviços posteriores.

[2] Quando estiver preocupado com algum familiar, entregue a Deus.