FIO DE PRUMO
Quanto mais somos brindados pelo tempo de existência, tanto mais
armazenamos experiências próprias ou vividas por outros que conosco se
confidenciam. Ajeita daqui, ajeita dali, damos espaço para a
criatividade e reaparecem, em forma de contos, dez por cento realidade e
noventa, invenção. Avaliem vocês. Brotaram assim, talvez de uma bem
escondida tristeza crônica que nunca soube ou admiti possuir.
Há alegria, também.
Precisamos
de um fio de prumo humano ou divino para nos manter equilibrados nesta
vida. Dia após dia, alguém se reveza para nos manter aprumados,
oferecendo a mão solidária para que as paredes de nossa personalidade
subam eretas e se mantenham firmes. O peso, como os pesos da vida,
representa o sofrimento do qual não conseguimos escapar.
São contos. Nada mais que isso. São relatos
diretos, objetivos, sem muito espaço à poesia, sacrificada pela crua
realidade.
Dedico este livro àqueles que são FIO DE PRUMO
para mim!
Abençoados!
Lóla
ALQUIMIA
1º
Lugar no Concurso Interno de Minicontos
Associação de Escritores de Bragança Paulista
- ASES
- 2000
Os ovos vieram do leste; a farinha de trigo, do
norte; o leite, do sudeste; o açúcar, daqui de perto. A mulher
apaixonada misturou e assou. Queria fazer uma surpresa ao amado. O homem,
com apetite voraz, abocanhou tudo, sem falar nem "muito
obrigado!". Tudo permaneceu na estaca zero.
DONS
CASADOS
Premiado
em Concurso da
Sociedade de Cultura Latina do Brasil
- Agosto
2000
A
princesinha estreou nesse mundo com muita graça e suavidade. Recebeu
valiosos presentes ofertados pelos súditos do pai, Sua Majestade, o Rei.
Da varinha de condão de sua fada-madrinha, vieram dois dons, infundidos
lá dentro do coração, com um elo que os manteria inseparáveis: o Amor
e a Ilusão.
O
calendário ia anunciando o crescimento da feliz princesinha: tornou-se
jovem, sempre exibindo sua encantadora alegria. Junto com ela, se
desenvolviam, também, os dons ofertados.
Até
que... até que... a Peste da Desconfiança assolou o Reino, atingindo os
extremos limites. As
pessoas contaminadas ficavam arredias, desagradáveis, desconfiadas e
agressivas. No palácio, Sua
Alteza não escapou e foi acometida pelo mal. Sofreu os efeitos colaterais
e nefastos que acabaram por atingir o dom da Ilusão, que morava dentro
dela.
Coitadinha
da Ilusão... enfraqueceu e foi minguando rapidamente, aterrorizando o
Amor, seu dom casado, que esperneou, desesperado.
Não houve jeito; a Ilusão deu o último suspiro, deixando-o
sozinho e mergulhado no vazio.
O
acontecido refletiu-se no rosto acabrunhado da princesinha, para sempre. A
saudade da Ilusão, que dava sentido romântico e fantasioso ao Amor,
estampou-se, indelével.
Ela
ainda sentia o Amor pulsando dentro de si, mas era, infelizmente, um Amor
triste. Convocaram a fada-madrinha, que revelou não ser capaz de recriar
a Ilusão: o Amor teria que superar a perda, se reprogramar, para
conseguir sobreviver.
CARÊNCIA
Heloísa
dobrou o pano de seda verde e amarelo, com cuidado, reduzindo-o a um
pequeno volume que escondeu no fundo da sacola, junto à granada. Iria
avante com a importante missão. A bandeira dar-lhe-ia sorte!
Vestia-se
de cinza-escuro, cabelos presos à nuca; calçava tênis confortáveis,
para o caso de perseguição, pois a decorrência de seu ato era
imprevisível.
Afundou
na escuridão da noite, resoluta, com passos firmes e ligeiros. Ia
observando as janelas fechadas dos escritórios e, nos prédios
residenciais, luzes acesas somente nas guaritas de sonolentos porteiros.
Num boteco em penumbra, homens se embebedavam. Ninguém a notou se
esgueirando pelos muros.
Atenta,
detectou no ar, à distância, o ronco de um motor, diferente dos poucos
veículos que trafegavam naquela hora avançada. Surge e desaparece, em
seguida, o furgão da ronda policial.
A moça aperta contra o peito a perigosa bagagem.
Sentia
frio! Sempre sentia frio, à noite.Um frio-angústia, que lhe deixava as
articulações doloridas, dificultando-lhe os movimentos. A sensação gélida
noturna consumia as poucas reservas calóricas de seu organismo debilitado
pelo desregramento de vida. Desde
a idade da razão, padecia dos arrepios incômodos, provocados pela psique
conturbada, característica de crianças tristes. Vivera, desde a infância,
de favor, junto à mulher a quem tratava por madrinha e que nunca lhe
explicara tal situação. Seu estômago incorporava o descontrole dos
nervos e doía.
- Onde
estará minha mãe verdadeira? Por que sumira, me abandonando?
Inconformada,
às vezes a odiava, a ponto de gritar impropérios ao espaço, dirigidos
à malvada e desnaturada progenitora. Esses eventuais comportamentos
valeram-lhe o apelido de louca.
Na favela,
não tinha amigas. Hostilizava as garotas de sua idade, considerando-as
medíocres e ignorantes, lambuzadas de batom e maquiadas
grotescamente. Delas caçoava, numa pretensa e imaginária superioridade.
Trabalhara
num hotel de classe, como camareira. Lá conhecera Flávio, hóspede
permanente, bonito, elegante na descontração da juventude
irrequieta e solta, sem restrição de espécie alguma.
Os dois sentiram a atração e a afinidade dos extremos... e não
resistiram ao inusitado relacionamento desigual.
Flávio gozava da fama de "delinqüente" entre os
familiares de tradicional e respeitada estirpe.
O casal
iniciou um pacto de cumplicidade: ele fez com que ela se demitisse e,
regiamente, a sustentava. A
comida vinha então, em fartura, ao barraco, através da generosidade do
rapaz com quem partilhava a cama.
Ao
clarear do dia, ele desaparecia sob o sol, de volta ao hotel quando
assumia a metamorfose da ascensão social.
Não esquecia de deixar sobre o travesseiro amarfanhado, a
recompensa em dinheiro, pelo encontro.
Como
lazer, freqüentavam as reuniões de pessoas valentes e revoltadas contra
supostos inimigos da pátria, os considerados comunistas subversivos. O
grupo se auto-intitulava Luzeiro. Lá,
aprimoravam-se nas técnicas de guerrilha urbana, copiadas do Sendero,
cujas façanhas acompanhavam pelas notícias de jornal e pela televisão.
Pretendiam impedir mais desordens sociais causadas pelos políticos
inescrupulosos, desobedientes à Constituição.
Isso, a qualquer custo, de qualquer maneira. As verbas para os
planos de limpeza do Brasil provinham de assaltos a bancos, quando, então,
a ousadia de Heloísa a qualificara para a missão.
O
Luzeiro exigia de seus membros, juramentos periódicos de lealdade
aos ideais patrióticos. Flávio e Heloísa se emocionavam em tais ocasiões.
A
doutrinação dos ativistas lhes estimulava a agressividade.
Os dois preenchiam suas tantas horas vagas com exercícios de tiro
na fazenda dos pais do rapaz. Divertiam-se,
alvejando bichinhos assustados, em corrida pelos campos.
Até o dobermann caiu sob as armas, esvaindo-se em
sangue, aos gritos triunfais dos atiradores. Vitórias sempre bem
comemoradas!
A
terrorista voltou à realidade da noite escura... e da concretização da
tarefa do atentado ao Banco Central.
Havia
um prenúncio de tragédia no ar! Heloísa
procurou na bolsa um baseado e acendeu-o, sorvendo o fumo com avidez,
ansiosa pela manifestação dos efeitos de coragem.
O ouvido captou, novamente, o conhecido e temido barulho do carro
da tropa de choque e tentou ocultar-se melhor. Apagou o cigarro de maconha
e jogou-o no fundo da bolsa entre a bandeira enrolada e a granada. Seus
dedos se enregelaram mais, ao sentirem o metal da bomba. Manteve-a firme, na mão.
Tentou
recapitular as normas de controle de nervos, mas a mente frágil confundia
a realidade com as mágoas do passado e, na névoa, divisava a figura da
madrinha com o amante, homem rude que a iniciara na droga, roubando-lhe a
inocência de menina. Tal homem a surrava, se irritado, ou a acarinhava
intimamente, em excitação estúpida e incontrolável dos instintos.
A
aspereza da granada trouxe-a de volta à semi-escuridão da avenida.
O barulho ameaçador estava perto.
O coração de Heloísa desandou e as mãos principiaram a tremer
dentro da bolsa.
Possantes
faróis a iluminaram. Homens fardados e armados saltaram do furgão,
cercando-a e ordenando que ficasse imóvel. Gritaram com selvageria,
mantendo a metralhadora apontada para sua cabeça:
- Tire
as mãos da bolsa, vagabunda, ou te furamos inteira!
Depressa, mostre o que leva na sacola, desgraçada!
Último aviso, miserável!
*
Os
dedos se engancharam no pino detonador e Heloísa destravou a granada.
Soltou a bolsa no chão. Levantou
os braços ao alto. Faróis de outro carro apontaram ao longe. Seria Flávio
cumprindo o plano, à sua procura e em seu socorro?
A noite brilhou
com o clarão de desintegração atmosférica, frente à explosão da
granada. O furgão incendiou-se, suplementando a iluminação
aterradora.
Heloísa
sentiu-se estourar, dividir-se em minúsculas células dispersas no etéreo,
misturando-se às partículas carbonizadas de seus inquiridores.
Em percepção extra-sensorial, foi-lhe facultado ver Flávio
fugindo do local, em alta velocidade.
*
No espaço
infinito, veio-lhe ao encontro, aparentando felicidade, uma mulher
extremamente parecida consigo. Heloísa
sentiu-se livre, leve, em sensação de paz jamais experimentada
anteriormente. Olhou com
muito amor para a mulher e pensou:
-
Será que, finalmente, encontro minha mãe?
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